maio 30, 2007

Qualquer realidade é mera ficção

Norte Como sair vivo de uma das maiores crises sociais que acometeram, já no início, o século XX? O esforço em reatar fragmentos de palavras, pessoas ou o que mais fosse resultou num episódio curioso, relatado por Norval Baitello Júnior (As imagens que nos devoram): no ano de 1919, em Berlim, os divertidos dadaístas, em mais uma de suas concorridas sessões públicas, promoveram uma corrida entre uma máquina de costura e uma máquina de escrever. Enquanto Raoul Hausmann costurava febrilmente uma tira de tecido juntando uma ponta à outra, Richard Huelsenbeck datilografava, como louco, página após página, de uma escrita qualquer. Do lado francês, Duchamp, três anos antes expôs sua obra Fonte, ou, como quiserem, um vaso sanitário. Vinte anos depois, o sergipano Arthur Bispo do Rosário teve uma visão: Jesus apareceu-lhe cercado por sete anjos azuis. Vagou pelas ruas do Rio até ser internado diagnosticado como esquizofrênico-paranóide. Agressivo, Bispo acabou preso numa solitária do hospício. Ali começou a ouvir as vozes que ordenavam que ele reconstruísse o universo. Foram 50 anos ininterruptos de internação (e desenvolvimento simbólico criativo), até sua morte, em 1989. Entre as 802 obras assinadas pelo artista, impressionam o Manto da Apresentação, com o qual deveria se apresentar no dia do juízo final, as Vinte Garrafas Vinte Conteúdos, e também um Vaso Sanitário. Sul José Joaquim de Campos Leão, nome de batismo, Qorpo-Santo por escolha (aos 34 anos), em 1877 faz publicar a Ensiqlopédia qorposantense, em nove volumes, oito deles impressos na própria gráfica, a Tipografia Qorpo-Santo. Qorpo-Santo foi tomado por um período breve e caótico de criatividade, escreveu entre 31 de janeiro a 16 de maio de 1866 nada menos que dezessete peças teatrais. Só era capaz de ouvir o outro que estava dentro de si. Foi diagnosticado com exaltação cerebral, mas sem que algo indicasse em seu organismo um estado mórbido: “a privação de sua liberdade, as contrariedades por que tem passado, e sobretudo a idéia que tanto o compunge de que o conservem recluso porque o julgam um louco nocivo, são causas muito poderosas que podem agravar seu incômodo”, registra o atestado médico a propósito da passagem pelo Hospital Psiquiátrico D. Pedro II, o mesmo que hospedou Ernesto Nazareth e o escritor carioca Lima Barreto. Este deixou espirituoso registro em seu Diário do Hospício: “Um maluco, vendo-me passar com um livro debaixo do braço, quando ia para o refeitório, disse: Isto aqui está virando colégio”. Mal saberia que a partir de 1949 o hospício seria reformado para dar lugar às instalações da futura Universidade do Brasil, atual UFRJ, num contexto social muito mais arejado após a passagem de nomes como James Joyce, André Breton, Clarice Lispector, Edouard Dujardin, entre tantos que se valeram dos inúmeros recursos estéticos vanguardistas dos quais Qorpo-Santo foi precursor. Em tempo: por que saíram do hospício Nazareth, Barreto e Qorpo-Santo, se as arcaicas técnicas curativas eram baseadas em ópio, banhos, isolamento, cauterizações, sangrias e purgantes? Mais ao norte
O uso desmedido dos controles disciplinares, exercido com afinco ao longo da história dos saberes, é reflexão necessária. Sua laceração da ordem e do mundo atua sobre as doenças (psiquiatria), os costumes (presídios), a autoridade (tribunais), a arte (museus), e onde mais quiserem que seja. O lugar da abjeção do corpo rigorosamente disciplinado pode ocupar os poemas, os livros, as festas, o sexo e, em demasia, as idéias. Em contrapartida, os vitimizados podem buscar restabelecer vínculos os quais somente se compreendem por si próprios, quer dizer, passam a ser ininteligíveis aos olhos de outros. Para ser enfadonho nas ilustrações, a última deste texto, falo de Daniel Paul Schreber (1842-1911, Memórias de um doente de nervos). Seu surto se desencadeia quando aos 51 anos é nomeado juiz presidente da Corte de Apelação na Alemanha. A partir daí vive um colapso simbólico, partindo da idéia de que foi incumbido de reconstruir um novo mundo, no lugar daquele arruinado pelas epidemias devastadoras e pelos conflitos religiosos e políticos. Como parte fundamental dessa missão redentora está sua emasculação, ou seja, sua transformação física em mulher para gerar descendentes diretos de Deus e, com isso, povoar a Terra engendrando uma nova ordem.

maio 27, 2007

"...meu homem já gozou hoje..."

Vou cantar um sambinha assim engasgado, assim como quem assopra e não presta atenção muito nas coisas que passam, assim... pela culatra, que ninguém é de ferro.

A vida é vertigem (bis)

A vida não é, Cinderela

A vida é vertigem

não é Cinderela

quando você acorda com bafo

descansa no parapeito

da janela (bis)

aquilo vai dando uma vertigem

e você não é a Madonna

não é Cinderela (bis)

A vida é vertigem...

vertigem...

A vida é vertigem (bis)...

[intervenção cênica de Arnaldo Antunes]

o que você tá fazendo-do-do?

andando com quatro-tro mãos?

deixa esse breque e vem pra cá-cá-cá-cá.

maio 25, 2007

OMO, 50 anos

Higiene e ascese

O consumidor brasileiro gasta cerca de R$ 2 bilhões por ano com sabão em pó, o que significa um mercado de 400 mil toneladas do produto. É um segmento disputado, palmo a palmo, por duas grandes multinacionais: a Unilever e a Procter & Gamble, que abocanham respectivamente 70 e 13 por cento do mercado. Omo ou Ace, não importa, como sabe a minha vó, sabão bom tem que limpar com profundidade e fazer espuma.

Limpar em profundidade equivale dizer que a roupa é profunda, o que a magnifica, torna-a, nas palavras de Roland Barthes, um objeto sedutor perante os obscuros impulsos de envolvimento e de carícia que existem em todo o corpo humano. Por sua vez, a espuma, substância simultaneamente profunda e aérea, pode mesmo ser o signo de uma certa espiritualidade, na medida em que considera o espírito capaz de tirar tudo do nada, continua o escritor, a propósito do entusiasmo provocado pelo Primeiro Congresso Mundial de Detergência (Paris, 1954).

Suponho que certamente Barthes sabia que nem a criatividade publicitária e industrial, nem o hedonismo do consumidor, têm limites. Por isso chegou ao mercado Ariel, líder absoluto entre os americanos. Ganhou partículas azuis e foi azulando, para atender à exigência dos brasileiros, que vinculam o produto à antiga e alvejante pedra anil.

O que quero destacar é que o significado de luxo da espuma fortaleceu-se diante das “partículas azuis”, agora disponíveis no creme dental Colgate Max Fresh Cinnamint (o único com cristais refrescantes feitos de enxagüante bucal que se dissolvem instantaneamente durante a escovação proporcionando uma nova dimensão de refrescância) e até nos xiclets. Nos dicionários lemos: Fresco - aprazível, recente, bem arejado, ameno, viço. Associa-se a montanhas, frio, mar, céu, viagem, sentido (direção), advertência, precaução, confiança. Proporciona sensação de maturidade, infinito, higiene, principalmente quando na presença de branco, e ostentado, ainda mais, pelo brilho.

Por sua vez, o mercado de cremes dentais movimenta quase um bilhão de reais ao ano no Brasil - o que não impede ostentarmos uma triste estatística: estudo da Fundação Oswaldo Cruz aponta que 14,4% dos brasileiros já perderam todos – todos! – os dentes. A que serve, afinal, essa nova dimensão de refrescância oferecida? Afrescos Giotto di Bondone (1266-1337) revolucionou a pintura ao criar a noção de tridimensionalidade. Abandonou a rigidez bizantina e dotou suas figuras de volume e sentimento, expressando assim, por meio da arte, o humanismo que são Francisco de Assis imprimiu à religião no início do século XIII. Através do Tau (Τ), símbolo imortalizado pelo santo preso em cordão amarrado ao pescoço, encarna o discernimento da pobreza no material e da riqueza no espiritual. O traço horizontal significa a expansão terrena, enquanto o vertical significa o celeste. Associa-se à cruz vitoriosa clavada numa estaca sobre o leito da morte, que encontra na vida espiritual a perfeição, a reconciliação e a unidade. Nos inúmeros ciclos de afrescos sobre o santo, imortalizado também por Dante e Santo Tomás de Aquino, Giotto concilia ilusionismo e cinética, espiritualidade e humanidade. Destacam-se São Francisco pregando para os pássaros e O sonho do Papa Inocêncio III.

A mão da limpeza

Em meados de 1930, os jornais em circulação na cidade de Salvador contam um sem-número de reclames, por diversos setores da população, quanto à prática de lavagem de roupas nas ruas, calçadas e passeios, que muitas vezes acabou ocasionando pequenos acidentes promovidos pelas águas com sabão jogadas nas vias transeuntes pelas lavadeiras negras.

Um século antes, em São Paulo, cidade que contava com pouco mais de dez mil habitantes, intolerável era o conversar ruidoso em torno aos chafarizes, em meio às rodas de capoeira e partidas de jogos, misturando escravos a homens livres pobres, também trabalhadores de diversos ofícios e expedientes, numa convivência tensa e necessária para a sobrevivência.

Por suas quatro torneiras de bronze, o chafariz do Largo da Misericórdia (1792), construído pelo escravo Thebas em troca de sua alforria, vertia água trazida do Anhangabaú. O chafariz, e também a igreja, foram demolidos em 1888, colocando-se em seu lugar uma mera pintura em referência ao patrimônio cultural que testemunhou parte da história de nossa cidade.

maio 23, 2007

Tupy or not Tupy?

Sim, o ano só começa depois do carnaval. Muito depois para alguns. Bem-vindos.

"Ela entrou com embaraço, tentou sorrir, e perguntou – se eu a reconhecia? O aspecto carnavalesco lhe vinha menos do frangalho de fantasia do que do seu ar de extrema penúria. Fez por parecer alegre. Mas o sorriso se lhe transmudou em ricto amargo. E os olhos ficaram baços, como duas poças de água suja... Então, para cortar o soluço que adivinhei subindo de sua garganta, puxei-a para ao pé de mim e, com doçura: - Tu és a minha esperança de felicidade e cada dia que passa eu te quero mais, com perdida volúpia, com desesperação e angústia... " (M. Bandeira)

Custa caro acreditar neste país. De que cor é a água do Tietê? Nossa Bagdá de balas perdidas de fuzis invadindo o horário nobre da favela. A redução da maioridade penal. E certo deputado eleito em recorde desce do salto e roda a baiana. Por falar em baiana, assisti a Ó Paí Ó. Comecei o filme à vontade, entregue à liberdade cretina do tudo pode, afinal, é carnaval e não existe pecado do lado de baixo do Equador. Afinal, são sintomas da democracia conviver com aquilo de que se gosta e com aquilo de que não se gosta.

Deixo claro: o filme é fraco. Em poucos momentos a diretora merece elogios pela sensibilidade de se distanciar do “enredo” e olhar por cima desse samba, suor, cerveja, dessa alegoria que a gente inventa pra dar mais gramur à nossa miséria. Insisto, isso ocorre em poucas e singelas tomadas, uma das quais escolhidas para encerrar o longa, literalmente, por baixo. Claro que com isso a obra não redime o resto, quando se parece com um daqueles musicais da Angélica que a gente via quando criança.

É inútil questionar, enquanto dura o filme, se o carnaval da Bahia dura um mês ou o ano inteiro, ou se o ano começa ou termina com ele; suar suamos todos nós, todos os dias. Não me agrada é o conservadorismo do filme, a maré que conduz os personagens. Em cada um uma potência dispersada que nada solidifica, e se anula pelo próprio curso da trama quase beirando o happy end, sofre quem fica e sofre quem parte.

Uma dessas personagens, na melhor linha Carlota Joaquina, cruza o Atlântico em busca de sua chance de Aladin, mas se vê reconduzida ao incômodo de terminar seus dias em Salvador. Quantos de nós não faremos o mesmo, menos por coragem que pela fraqueza de aceitar lavar os pratos do gringo? A mesma fraqueza dos nossos parlamentares, dos nossos magistrados desmotivados, dos nossos professores e de nós estudantes.

Digo uma última vez: o filme é bem fraco, é condescendente como a maioria de nós e sequer provoca indignação. Faz uso de todos os jeitinhos brasileiros a que estamos acostumados e a exemplo do roteiro da vida real, só pega no tranco, quando a coisa aperta, depois da tragédia consumada. Mas aí a estória já acabou, custou vidas, e a banda já passou no embalo do mais novo sucesso do verão. Revela outra vez sua potência com a mesma intensidade que se desfaz, afinal, é sempre carnaval. E cada povo tem a ressaca que merece.

[Hélio Eichbauer, detalhe do cenário para O Rei da Vela, 1967]