dezembro 27, 2009

"A expressão daquilo que existe é uma tarefa infinita"

Qual o sentido da crítica em artes visuais que se utiliza de palavras se antes de tudo se impõe a experiência de ver? Essa desmedida, de antemão afirmada nas exposições Jogos de Armar e Sala de espera, é um conveniente ponto de partida para uma aproximação com essas perspectivas peculiares que nos atiram pela janela em direção à rua, às vezes nos suspendem diante de uma cozinha qualquer, ou em certos casos são ignoradas pela memória após um átimo de atenção ao retrovisor do carro e retornam açambarcadas pela tinta, meio sem jeito, desconfiadas, na composição pouco convencional de algumas cenas aqui descritas. Em que consiste esse estranhamento familiar que dissipa e reconhece o mundo através da visão?

Estamos habituados a uma determinada leitura seqüencial da escrita (o mesmo valeria parcialmente para o cinema), ocidental acima de tudo, graças à qual a ocupação linear do espaço faz-se em palavras e também vazios que aqui compõem o próprio texto agora lido. Seria possível elaborar uma relação diferenciada entre as letras e o vazio do papel que estivesse a par da pintura de Ana Prata e ainda assim dissesse as palavras que ela diz: mesa, café, vaca, samambaia, jeans, estrada, navio, sofá, árvore de natal? Quando nos deparamos com o aleatório instaurado por uma tela como O Livro, entendemos que é o momento de se fazer uma digressão, pois esses grandes vícios da experiência são colocados em grande ênfase.

Nessa pintura, uma ficção criada por um material chamado tinta é rearmada cinicamente pelo grotesco do marcador luminoso de texto sobre a página de um livro, conquistando com isso uma nova e anônima dimensão de leitura, sem o tornar obsoleto, encaminhando-o ao destino provável para o qual foi incumbido: revelar acessos. Essa estratégia de invenção repetida custa a continuidade da própria ficção, porque nenhum desses processos é mais do que tinta também. É, ainda, a maneira de Ana comentar a singularidade de cada leitura da obra numa perspectiva crítica daquilo que seria esperado da pintura frente aos apelos das imagens de circulação rápida e ampla – um repositório de temas conexos, tais como afirmações de subjetividades emergentes, devaneios líricos do eu cambiante, afloramentos da percepção estética pós-moderna do sujeito, ou qualquer outra configuração banal de tempos "pós-qualquer-coisa".

Esse comentário se estende para [a série de pinturas] Um parque de diversões para a cabeça, de Julia Csekö, quando a artista propõe reunir trechos de livros numa composição pictórica de palavras, reclamando uma superação da compreensão idiomática da frase, tão cara a uma sociedade de fluxo global. Ainda que diferenças marquem as propostas poéticas dessas artistas na utilização dos intervalos que são criados entre as formas, no caso de Julia, e das porções distanciadas de tinta, no caso de Ana, vejo que ambas referem-se a uma postura semelhante que reivindica um desejo de compreensão profunda das coisas num mundo de instabilidade acelerada, agregando ao seu valor intrínseco possibilidades antes desconsideradas (por exemplo, quando as imagens resultam de apropriações), e um sentido altruísta na constituição da linguagem, através da percepção da relação entre as coisas operada com uma irônica volta ao tema.

O diálogo que Ana estabelece, por exemplo, com Rodrigo de Andrade, é o traço demarcador diferencial. Rodrigo, cuja obra recente passaria despercebida enquanto investigação sobre a reação da matéria à luz, tem por tópico a aguda comparação entre os objetos artísticos e os não-artísticos, distinção cada vez mais fluida no sistema de arte contemporânea (distinção cara também à esfera da crítica). Assim, Ana, já nascida sob o império do incessante câmbio entre os signos, responde a essa proposta com imagens que estão por se formar, nas palavras de Jorge Menna Barreto.

Acima de tudo penso que, ao se confrontar com algum trabalho de Ana Prata, é preciso questionar se estamos diante de uma pintura cuja índole se resume ao compasso do óleo sobre tela, opinião que, se afirmativa, teria o benefício de conduzir a análise no restrito caminho daquela linguagem artística. No entendimento de Clement Greenberg, o século XX, na experiência anti-iluminista de duas guerras mundiais, destruiu a tradição da pintura privando-a da discussão sobre o futuro dos seus próprios materiais, e a escultura, por sua vez, liberta da massa e da solidez, encontrou um mundo muito mais amplo diante de si, e se viu em condições de dizer tudo o que a pintura já não podia.

Ocorre que hoje estamos diante de seitas que funcionam de modo a caracterizar receitas, listas de materiais e técnicas cada vez mais mistas. Naturalmente, a pintura ganha interesse na agenda crítica enquanto desdobramento de sua inabalável missão de compor um panorama da sociedade da qual supostamente havia se divorciado, quase resultado de um obrigatório exame rotineiro de seu estado clínico terminal, e igual necessidade vã de afirmar seu renascimento das cinzas. Por isso acreditamos que ainda é possível problematizar o obituário da pintura assentado nas teses desenvolvidas por Greenberg. Antes, nos espantava a maneira brusca com que Manet rompeu a representação tradicional dos gêneros pictóricos, até que a cor, o plano e a própria experiência visual fossem dilacerados pela experiência cubista. Recusamos, com atraso, encarar frente a frente a idéia de um progresso no pensamento visual pois isso refutaria que a pintura mantém constante a dúvida sobre seu estatuto. O horizonte moderno que se abriu há aproximadamente cento e cinqüenta anos fez dessa denúncia seu fio condutor no pincel de vasta parcela dos artistas, a começar pelo pintor de Olympia, com a subversão operada sobre as formas simbólicas que a sociedade burguesa criava ao redor de si. A crítica, decerto, desde então jamais se eximiu de passar a limpo o triunfo de Manet, mas se extenua porque o panteão sempre abrigará novos candidatos à inauguração de determinado estilo.

Para acentuar essa "filiação" de Ana Prata ao melhor da vanguarda pictórica, quero emprestar as belas palavras de Michel Leiris, quando se refere ao passe do torero em Tauromaquia. Ana Prata, cuja postura corporal foi a primeira coisa que me chamou a atenção, executa na sua pintura aquilo que o torero executa sob o nome de passe – aquele descompasso mínimo graças ao qual a tangência completa, entre touro e homem, é evitada, porque seria necessariamente catastrófica: Tudo concorre para dar a impressão dessa tangência, mas tudo permanece, no final das contas, ligeiramente aquém. E desse aquém – desse hiato ou falha mínima, onde um lábio seria o além e o outro lábio seria o além – nasce a porção maior do prazer (p. 34).

É preciso, todavia, levar em consideração que suas essas telas estão no mesmo ponto de partida, ou dispostas a uma mesma condição, onde se encontram outros suportes, linguagens e ações do fenômeno visual, e que cada elemento desse conjunto reivindica para si a maior atenção possível no universo de modismos exaltado por galerias, feiras, escolas, exposições.

Por isso, a advertência ao nadador deveria fazer sala a qualquer um que se depare com a virgindade da superfície pictórica, antes de se aventurar nesse jogo de armar que é a pintura: Nadador nenhum (por mais que haja esposado o mundo resumido na onda em que se desloca, por iminente que seja o perigo ao qual sua ciência permite que ele escape) chegará tão perto do ponto crucial como chegam o torero, o poeta e o amante, cuja ação inteira funda-se sobre a ínfima, mas trágica rachadura por onde se mostra o que há de inacabado (literalmente: de infinito) em nossa condição (p. 57).

Volto a pensar, afinal, nas cenas que Ana dispõe isentas de qualquer informação paralela, de exigências por significados, às vezes com a simples leveza de um “Posso ser uma samambaia, preciso pedir licença para ser?”, como fala o agudo provocado pela palavra cortante e funâmbula de Clarice Lispector. É na falsa ingenuidade de uma circunstância banal como uma calça descansando atrás da porta que se revelam os maiores abismos – uma porta fechada, um zíper aberto. Caminho aberto, que não é interrompido nem corrompe para uma nova ordem, deixa levar porque sabe que o preço da perdição é a medida do incomensurável, do nosso infinito. Por isso certas vezes parece ser tão importante domesticar esse risco, se ater aos limites enfrentados, entre compreender a cena ou assisti-la, entre virar a página da revista ou ser seduzido pelo anúncio publicitário, entre mais um gole de café ou a contemplação inútil sobre a toalha bordade que tudo pode revelar. E se não for revelado? Mas e se tudo for revelado? Tensão elevada à potência na sala de espera de ser.

Se fosse necessário, ainda, dar um nome a esse procedimento que resulta numa árvore decorada com enfeites natalinos, numa mesa delimitada por um pano de prato sem fazer questão de ter um apoio visível além do próprio pano de prato cor luz sombra sem qualquer desenvolvimento de um roteiro, em suma, através de estratégias calculadas apenas com o pincel, que procedimento seria esse? É um conceito informe que se constrói. A franqueza que não chega a esbanjar para ser gestual é uma reunião de perguntas sobre o que é a natureza da pintura até o limite da nossa situação diante delas: por que uma samambaia? É um pato ou uma pomba? Para mim é uma pomba, para você pode ser um pato, para nós aquilo deve ser uma samambaia... mas e a vaca, é mesmo uma vaca? Em correspondência a Manet, que confessava apavorada ansiedade pela reação do público com Olympia, Baudelaire também perguntou “É mesmo um gato?”. Perguntas que soam com espontaneidade porque já não nos familiarizam com um universo ao nosso redor e reverberam: nós somos contemporâneos? A quem somos contemporâneos? Dizem que as samambaias estão na Terra há muito mais tempo que todos os animais e vegetais existentes, mas esta samambaia me é contemporânea.

A tarefa que Ana desenvolve até agora nas suas telas não pretende inovar a linguagem nem mesmo utilizá-la em procedimento arcaico, não pretende ser carne, nem pele nem víscera de óleo em tela. A pintura contemporânea, além da utilização de materiais contemporâneos – este hábito tão comum entre os artistas menos engajados com a construção de um mundo sem ordenação paralela com o mundo que conhecemos – pergunta por uma nova ordem quando é feita dessa substância tão particular quanto universal, por isso única, os pensamentos – por mais que encontre aproximações em revistas, anúncios de publicidade ou fotografias do noticiário. E quem de nós pode dizer como as coisas desejam ser quando, como disse Merleau-Ponty comentando o trabalho de Cézanne, a expressão daquilo que existe é uma tarefa infinita?

dezembro 02, 2009