outubro 21, 2009

A imagem preservada de extinção

[Uma euforia parece impulsionar a pintura brasileira novamente. Arrisco dizer, também, que tenho uma hipótese: isso acontece de maneira melhor elaborada a cada vinte anos, aproximadamente. De certo, há muita simploriedade e reducionismo na minha colocação, mas nisso deve haver algum grau de coerência com o entusiasmo que hoje vivenciamos. Porque, se o motivo não for essa suposta reincidência (que logo pretenderei demonstrar), ele só pode estar, ou na desatenção de nós espectadores para o amplo cenário em que se desenvolvem as artes visuais, ou na bem sucedida especulação artimanhada por artistas, galeristas, colecionadores, críticos, público etc. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Não vamos nos prolongar em tal seara em detrimento da peculiaridade que o pensamento artístico oferece – uma vez que tal atitude nos levaria à vigilância constante em galerias e ateliês, e, infelizmente, essa tarefa é restrita à fortuna de poucos e disciplinados. Nosso objetivo aqui não é responder à vertente que sempre proclama a morte de alguma coisa e o começo de outra qualquer, ou enfatizar movimentos, escolas, grupos estilísticos, tampouco condensar as brilhantes análises monográficas dedicadas aos artistas, cuja realização nunca será descartada.]

A persistência da pintura constitui um dos debates essenciais na vida moderna, especialmente porque a representação metafórica e ideológica que a pintura faz da prática social é sempre uma parte desse mapeamento, feita a despeito da sua ideologia, segundo aponta Timothy J. Clark. Dois trabalhos, exibidos até esta semana na cidade, embora não se tratem de pinturas propriamente ditas, me provocam o impulso do argumento que pretendo desenvolver.

Pazé e Milton Machado são reconhecidos pela diversidade de suportes que suas ousadas imaginações constroem. Não se pode dizer que eles pertencem à mesma geração de Rodrigo Bivar, Bruno Dunley, Regina Parra, Rodolpho Parigi, Ana Prata, Ana Elisa Egreja, Eduardo Berliner, Renata de Bonis, Marcos Brias, Marina Rheingantz, Rafael Carneiro, André Ricardo, Luciano Deszo, Maura Grimaldi, Steven Kim, Sarah Douglas, Dana Schutz, Mariana Lopez e outros que em breve deverão ganhar notoriedade pela qualidade dos trabalhos que vêem realizando de maneira tão criativa e fértil. Longe do estímulo prático que a pintura acentua nestes jovens artistas contemporâneos melhor divulgados na recente safra, discípulos confessos ou não dos expoentes da geração anterior (meados de oitenta), a reflexão na qual Pazé e Machado se inscrevem pertenceria a uma vertente dissidente, mas nem por isso menos dedicada à sua tarefa.

À primeira vista, seria até possível que todos tivessem como grau zero ou ponto de partida o poema conhecido de João Cabral de Melo Neto, Lição de Pintura: Quadro nenhum está acabado,/disse certo pintor;/se pode sem fim continuá-lo,/primeiro, ao além de outro quadro/que, feito a partir de tal forma,/tem na tela, oculta, uma porta/que dá a um corredor/que leva a outra e muitas outras (in Museu de Tudo, 1976). Pois não são outros os materiais eleitos em Produção, de Milton Machado, e em A Coleção, de Pazé. No primeiro, gavetas de escritório revelam sua propriedade estética, ignorada quando as vemos apenas como meras gavetas. Sucedendo-se na sugestão de degraus cuja sequência idealiza uma escada, já não são mais gavetas nem serão uma escada, são desenho. Já a reunião de pinturas selecionadas por Pazé para cobrir todas as paredes da galeria compõe algo além de uma coleção, porque não estão ali imagens elogiosas da universalidade e sim negociações ruidosas para desobstruir sendas que o conjunto não logra homogeneizar. O assédio provocado pelos olhares dos retratos o impõe de maneira fantástica, quase sonora.

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Pintores são, antes de mais nada, aqueles que, a despeito do plano absconso bidimensional, encontram nele portas e abrem-nas, desenvolvem corredores com acesso a mais portas, novos corredores, interrompidos por novas portas, possíveis de serem abertas em sucessivos e intermináveis corredores e portas que ninguém antes via. Por vezes, sua tarefa é de tal ordem excruciante que podem conduzir ao cenário que Luc Tuyman situou em uma câmara de morticínio (Gaskamer, 1986) ou que Mariana Lopez orquestrou na carnificina de Fallen Tree (2005).

Nesta primeira incursão tentaremos distinguir em que momentos um conjunto dos artistas que podemos reunir sob a alcunha Geração opta por lidar com os efeitos do deslocamento metafórico que a imaginação moderna engendrou. Em outra palavras, buscamos sua familiaridade com a subsistência de um problema radical: aquilo que já sabemos não merece ser expressado pela pintura. Se em Pazé e Milton Machado essa relação seria apenas sugerida, devemos nos perguntar quais os recursos expressivos que os pintores de hoje elegeram para torná-la visível, e não apenas sugerí-la, e em que termos isso se afirma no contexto da prática social deste início de século. (CONTINUA...)

Paulo José Keffer Buarque Franco Netto é conhecido como Pazé e nasceu em 1962. Milton Machado nasceu em 1947. Felipe Tonelli, 1985, é aluno do Bacharelado em Artes Visuais na ECA/USP.

outubro 16, 2009

outubro 03, 2009

Que dor de te saber tão morto

"se um mero círculo, subdividido em nove câmaras, dá lugar a tantas combinações, o que não podemos esperar de três discos, giratórios, concêntricos e manuais? As circunstâncias e propósitos dessa máquina não nos interessam agora; e sim o princípio que a moveu: a aplicação do azar na resolução de um problema. No exórdio deste artigo, eu disse que a máquina de pensar não funciona. Caluniei-a. Funciona esmagadoramente. Imaginemos um problema qualquer: elucidar a 'verdadeira' cor dos tigres. Dou a cada uma das letras lulianas o valor de uma cor, faço rodar os discos e decifro que o inconstante tigre é azul, amarelo, negro, branco, verde, roxo, alaranjado e cinza ou amarelamente azul, negramente azul, brancamente azul, verdemente azul, roxamente azul, azulmente azul etc..."