junho 10, 2009

O canto da sereia

Em 10 de junho de 1982 morreu Rainer Werner Fassbinder, criador de cinema, teatro e televisão cujo legado soma quase 60 produções. Tudo isso com apenas 37 anos de vida. De Lili Marleen (Alemanha, 1981, 120 min) é a primeira imagem de hoje. Assisti ontem e fichei algumas informações de relevância para quem se interessar.

Sobre o enredo, basta dizer que o filme conta a história de Willie, personagem inspirada na cantora Lale Andersen, que alcança sucesso meteórico de carona na ascensão nazista ao interpretar a canção que dá título ao filme. Todavia, a sereia estará dividida entre o agrado ao alto escalão do regime e seu verdadeiro amor, um maestro judeu. Embora não se trate de hino bélico, a canção foi entoada por todas as trincheiras da Segunda Guerra, não importando o lado. Os versos enunciam o dilema da participação na guerra em gradação equivalente à necessidade de arregimentação. A donzela amada permanece imaculada no pacífico lar (ou um camarim, no caso) mas é por intermédio da sua transfiguração na sereia Lili que o reencontro com o amado é imaginado possível.

A função que o diretor propõe é criar atrito nessa zona nebulosa onde se cruzam o devaneio e a reafirmação do ímpeto que leva os soldados ao front . O perigo que um filme como esse expõe não está somente na denúncia da conveniência e do oportunismo do comportamento humano, assunto para a qual uma pensadora do porte de Hannah Arendt já havia chamado a atenção desde a década de 1950 em seus textos sobre a experiência da banalidade do mal. A contundência da proposta de Fassbinder, principalmente enquanto expressão criativa, reside no questionamento implacável da liberdade humana. A ação ultrapassa o campo estético movimentando recursos cinematográficos que não são exatamente sofisticados mas cujo impacto é seu ponto de interesse. As aproximações bruscas no enquadramento de alguns objetos e semblantes recoloca impulso na dinâmica emissor-receptor. Dado que o espectador não interfere na sequência do filme nem na sua continuidade, optaou-se então por forçar algumas ocasiões de ênfase, como se perguntasse pela nossa atenção. Isso faz do filme também um espetáculo desafiador.

A cantora e dançarina Joelma Mendes, na sequência da seleção de hoje, fotografada (s/d) em show não identificado, enroscada em vestígios rosas com acessórios brancos.

Por fim, a performance não menos exuberante em solo vietnamita da cantora Ann Margret, que conheci por sugestão do meu chefe e depois confirmei em referência encontrada no filme Nascido para matar (Inglaterra, EUA, 1987, 116 min).

junho 08, 2009

O que é o fim?

“Não há remédio para a morte, a não ser o filho”

(provérbio bambara)

O direito se recusa a considerar que os mortos possam sobreviver, mas lhes reserva algum status, ao menos por um tempo, provisório ou não. Julga-os inexistentes, mas organiza-lhes o estatuto, cuja influência é limitada aos fatos, gestos, falas e escritos realizados em vida. O fato de morrer condena o defunto, seja ele lançado ao nada ou n´outra vida, ao silêncio. A permanência da presença dos mortos que é preservada no interesse dos vivos não é de todo eterna: serve para legitimar os filhos, preservar a vontade testamentária legítima, e até homenagear sua memória (pelos vivos).

Vejamos como a questão é colocada pelo antropólogo Norbert Rouland: Os defuntos ficam durante um tempo ao lado dos vivos, mas só podem viver pela lembrança que estes têm deles. E essa lembrança é a do corpo. Daí o terrível dilema no qual o direito e os vivos se encontram mergulhados em face do cadáver: deve-se ver nele simples vestígios ou, ao contrário, uma parte indissociável da pessoa?

O estatuto conferido aos mortos pelo ordenamento jurídico expressa bem a dificuldade que temos em ver desaparecer aqueles que amamos em seu aspecto corporal. O tempo durante o qual o direito protege o cadáver da exumação é propositadamente o mesmo que se leva para sua desintegração. Pelo que conclui Rouland “a substância humana é infinitamente menos protegida pelo direito do que a forma, pois (...) é acima de tudo pela forma que identificamos uma pessoa, na morte bem como na vida”. Portanto, para os mortos, o tempo é tão rigoroso quanto para os vivos, aqueles só estão presentes neste mundo na medida em que os vivos os solicitam.

De um modo ou de outro, quer nos direitos das sociedades tradicionais, quer nos direitos modernos, “é o esquecimento dos mortos que eles conduzem”. E o esquecimento é apenas a constatação de seu desaparecimento: não significa sua persistência nem sua supressão. Em outras palavras, feito para os vivos, todavia o direito pode penetrar no universo da fé, mas é sempre o homem que se projeta no mundo dos deuses, e não o contrário. Deístas que somos, se assim é possível dizer, temos dos deuses uma imagem feita à nossa semelhança: Hoje, por certo, nós nos vemos num espelho, de uma maneira confusa, mas então será face à face, diz-se em Coríntios 1, 13:12. Salvo para os materialistas, a revelação da unidade perfeita da verdade apenas aos mortos pertence. Aqui cabe apenas indicar o efeito desse pensamento, de fundamento budista, ao qual Heidegger se aproximou certa vez e disse: Nada sei acerca do ‘efeito’ que esse pensamento pode ter. É possível que o caminho de um pensamento nos conduza hoje ao silêncio, para impedir que ele seja vendido ao desbarato num curto espaço de tempo. É igualmente possível que seja necessário trezentos anos para que haja algum ‘efeito’.

A perenidade da matéria ou da memória condiciona nossa percepção do tempo, que também percorre o saber jurídico. As construções jurídicas tradicionais, por sua vez, nos demonstram a tentativa de percorrer esse outro lado do espelho, que tem na aproximação com os mortos grande serventia. Ao direito moderno, a contento da censura com que lida com o assunto religioso, não foi obstruído o acesso ao sagrado, e isto pode significar sua contribuição laica, a partir da busca trans-cultural dos direitos do homem.

junho 07, 2009

Sempre guardo correspondências, não importa há quanto tempo as recebi, menos ainda o emissário. Um sonho me diz sobre meu medo de que esse segredo praticado com o outro lado da vida seja revelado a todos. Não sou herege nem mártir. Recrio o tal sonho assim: vejo um envelope sobre um calhamaço, melhor, no meio das páginas de um livro. Qualquer livro. A principio, a obra é (...) e o observador precisa abrir o livro e folheando-o notar o envelope guardado - escondido. Folheando mais, e volta até a página exata onde tinha sido colocado e a partir daí não pensa mais no livro, não pensa não pensa em abrir o envelope (que não está selado nem endereçado a ninguém). Abre. sobre o lado de dentro, oculto pela aba de papel, lê escrito "E S Q U E Ç A".

junho 04, 2009

Em 31 de maio de 1973

A luz do sol do meio dia de maio
A luz do sol do meio dia de maio