junho 08, 2009

O que é o fim?

“Não há remédio para a morte, a não ser o filho”

(provérbio bambara)

O direito se recusa a considerar que os mortos possam sobreviver, mas lhes reserva algum status, ao menos por um tempo, provisório ou não. Julga-os inexistentes, mas organiza-lhes o estatuto, cuja influência é limitada aos fatos, gestos, falas e escritos realizados em vida. O fato de morrer condena o defunto, seja ele lançado ao nada ou n´outra vida, ao silêncio. A permanência da presença dos mortos que é preservada no interesse dos vivos não é de todo eterna: serve para legitimar os filhos, preservar a vontade testamentária legítima, e até homenagear sua memória (pelos vivos).

Vejamos como a questão é colocada pelo antropólogo Norbert Rouland: Os defuntos ficam durante um tempo ao lado dos vivos, mas só podem viver pela lembrança que estes têm deles. E essa lembrança é a do corpo. Daí o terrível dilema no qual o direito e os vivos se encontram mergulhados em face do cadáver: deve-se ver nele simples vestígios ou, ao contrário, uma parte indissociável da pessoa?

O estatuto conferido aos mortos pelo ordenamento jurídico expressa bem a dificuldade que temos em ver desaparecer aqueles que amamos em seu aspecto corporal. O tempo durante o qual o direito protege o cadáver da exumação é propositadamente o mesmo que se leva para sua desintegração. Pelo que conclui Rouland “a substância humana é infinitamente menos protegida pelo direito do que a forma, pois (...) é acima de tudo pela forma que identificamos uma pessoa, na morte bem como na vida”. Portanto, para os mortos, o tempo é tão rigoroso quanto para os vivos, aqueles só estão presentes neste mundo na medida em que os vivos os solicitam.

De um modo ou de outro, quer nos direitos das sociedades tradicionais, quer nos direitos modernos, “é o esquecimento dos mortos que eles conduzem”. E o esquecimento é apenas a constatação de seu desaparecimento: não significa sua persistência nem sua supressão. Em outras palavras, feito para os vivos, todavia o direito pode penetrar no universo da fé, mas é sempre o homem que se projeta no mundo dos deuses, e não o contrário. Deístas que somos, se assim é possível dizer, temos dos deuses uma imagem feita à nossa semelhança: Hoje, por certo, nós nos vemos num espelho, de uma maneira confusa, mas então será face à face, diz-se em Coríntios 1, 13:12. Salvo para os materialistas, a revelação da unidade perfeita da verdade apenas aos mortos pertence. Aqui cabe apenas indicar o efeito desse pensamento, de fundamento budista, ao qual Heidegger se aproximou certa vez e disse: Nada sei acerca do ‘efeito’ que esse pensamento pode ter. É possível que o caminho de um pensamento nos conduza hoje ao silêncio, para impedir que ele seja vendido ao desbarato num curto espaço de tempo. É igualmente possível que seja necessário trezentos anos para que haja algum ‘efeito’.

A perenidade da matéria ou da memória condiciona nossa percepção do tempo, que também percorre o saber jurídico. As construções jurídicas tradicionais, por sua vez, nos demonstram a tentativa de percorrer esse outro lado do espelho, que tem na aproximação com os mortos grande serventia. Ao direito moderno, a contento da censura com que lida com o assunto religioso, não foi obstruído o acesso ao sagrado, e isto pode significar sua contribuição laica, a partir da busca trans-cultural dos direitos do homem.

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