maio 19, 2011

Não está aqui o que você procura

René Magritte, O Falso Espelho, 1928 Antonio Dias, The ilustration of art, 1972 Nelson Leirner, Você faz parte II, 1964 Cildo Meireles, (...), e Espelho Cego, 1970

Fixemo-nos no concreto. O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas – que espelho? Há-os “bons” e “maus”, os que favorecem e os que de-traem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, Somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo Incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando.

outubro 28, 2010

volat irrevocabile tempus

Atrás da forma globalizada do real, de que estão ausentes contradições, diferenças e demais rastros do concreto, há talvez uma parte de indiferença. Noutra chave mais óbvia, é verossímil dizer que a designação vazia e abrangente do mundo a ser mudado recolhe algo do modo burocrático de operar. Unindo ambição e indefinição totais, o "tudo" funde as insuficiências do messianismo e a suficiência sem promessas da burocracia. (...) Como não temos parâmetros, o que fica é a gesticulação abstrata do desejo de transformar, embalada em tipografia atraente [em referência ao poema Póstudo, de Augusto de Campos, publicado no Folhetim de 27 de jan. de 1985]. A alteração vale para os outros contextos temáticos que assinalamos: revolução, luta literária, programa modernista, passado pessoal significativo, todos estão presentes através de um esquema do fazer transformista em geral - projeto, transformação, transformação do transformador - que na falta de seu objeto se reduz a imagem, encenação, ideologia de si mesmo. Desaparecem seu preço, o seu prêmio e seu sentido, e permanece o seu perfil, um prestígio antigo entre outros, quase uma saudade, pronto para ser matéria pop no mercado cultural. (Roberto Schwarz, Que horas são? - ensaios, página 66, 2ª edição).
El tiempo dize verdades, Pues nos dize en los del año. Que en nuestra vida es engaño Esperar eternidades, Buela ligero, y ligera Buela con el nuestra vida, En sus tiempos repartida Del mismo modo y manera; Primauera es la niñez, El Estio mocedad, Otoño virilidad Y el Inuierno la vejez; Nadie pues le finja eterno, Y aduierta, que suele hazer La muerte consu poder
De la Primauera Inuierno. (Otto van Veen, Q. Horatii Flacci Emblemata, 1612)

maio 27, 2010

São Paulo, 28 de maio de 2010.

Caro Leonilson,

Ontem estive na apresentação performática O Ilha, inspirada na sua obra, em cartaz no CCSP até domingo. Sei que a pretensa fama de ineditismo do lugar já foi alvo de críticas suas quando você lá expôs um apanhado de xerox de trabalhos de artistas contemporâneos e apresentou-os na forma de um painel, provocação explícita a respeito de certas "tendências" que assolam a produção visual de tempos em tempos, descomprometida com uma poética singular do artista.

O resultado proposto para a apresentação a que assisti foi de imagens à deriva que eram rarefeitamente alcançadas pelas luzes coloridas dos holofotes cercando o palco na altura do chão. Mas essas luzes eram torturadas por uma escuridão que engolia os corpos solitários e anônimos dos bailarinos, sempre presos ao solo, cujas cabeças estavam encaixotadas, sem contato possível entre si a não ser no universo em que se escondiam. Acho que o trabalho foi bem realizado, e então o entendi como um território de desejos que poderiam narrar movimentos de atravessamento, encontro, repulsão, e desapego do próprio sujeito desejante. Vejo agora que preciso explicar o que quero dizer com a ausência de contato entre os bailarinos: ainda que isso fosse possível, e era porque seus corpos se tocavam, o estranhamento decorrente do encaixotamento não me permite concluir que desse contato (um arquipélago se reunindo) resultaria uma experiência sensível - pelo menos incita-nos a investigar outras possibilidades de experiência sensível.

Por isso resolvi te escrever, quem sabe você possa me dizer se existe um outro mundo em algum lugar, por onde você já deve ter passado, onde a luz permaneça para ser vista por todos, independente de um olhar para ver ou não. Certa vez você definiu seus trabalhos como cartas que não podiam ser enviadas. Pois elas continuam encontrando leitores. Espero também que nesse outro mundo, bem diverso daquele onde você esteve até 1992, talvez ao menos nós sejamos continentes, onde cartas engarrafadas sempre cheguem após cruzar oceanos de escuridão.

A Construção